26.6.06

DELICADEZA

Reflexões sobre o Belém

Tatiana Belo Djrdjrjan

Senti o teu cheiro fresco ao andar nas tuas ruas entre cabisbaixa e altiva, aflita para não perder nenhuma das tuas indeterminadas quadraturas. Isso me preencheu de forma tão repleta que ainda não sei se me perdi para sempre ou se foi apenas um simples alerta. Reconheci nas tuas esquinas as mesmas quinas da minha memória universitária quando em ti estive exatos treze anos atrás, lembrança perdida e embaçada em meio a minha vontade libertária de compreender a tua história e o teu legado, ainda sem muita memória no meu passado.

A viagem para em ti chegar desta vez foi diferente. Ao invés das 44 horas por terra, foram apenas quatro nas asas do avião dormente. A rapidez de riscar o céu e adentrar sem aviso no norte me mostrou que em ti estar novamente - sem nenhuma programação - é mesmo pura sorte.

Na madrugada silenciosa, percorri suas ruas para encontrar abrigo. Imediatamente reconheci o teu aconchego, meu já eterno conhecido. A primeira noite foi de descanso manso a trazer para a memória todas as iguarias, festas e danças que me alegraram quando da primeira vez invadi o teu cenário.

Ao avistar a terra que te cerca no cais das docas, espaço da cultura e da arte, senti a tua inocência meio torta. Assim como as plantas de mandingas espalhadas pelas tuas ruas com nomes que indicam a atração que vigora nua. Chega-te a mim, vai-e-volta, carrapatinho, chora no meu pé e a que achei mais meiga e sincera, faz querer que não me quer, me mostraram como a selva está em ti presente, em cada esquina, cada rua, apenas com as plantas que dão o verde do seu ser sem estar aparente.

Há um certo frescor que guia o desejo do odor e das cores que os teus temperos anunciam. Quase como uma lembrança não vivida das recordações das especiarias das Índias, memória inexistente que me cativa como uma carícia e que me prende sem saída à minha imaginação sempre furtiva.

A chuva a cair, vez ou outra, mostrou a quentura do teu inverno. O céu sereno e límpido entre o escuro e o aflito precipitou suas lágrimas quando o teu calor o cercou, num ritual sem nenhum grito. Leve e sincera, inoperante e eterna a abraçar longamente meu corpo com o vento que não parou de soprar apesar do calor em nada aliviar.

No final do primeiro dia, a ânsia de te reencontrar me fez andar a esmo, sem indicações ou conselhos, ficando apenas com o meu olhar, preso entre os meus eternos tropeços. Avistei onde o baixo ventre em ti mora. Vielas quase desertas perto do cais com apenas algumas mulheres nas portas entreabertas, quase todas a escapar uma música estridente e indiscreta.Percebi que este lugar é parecido em todas as cidades, têm o ar do profano a lembrar o prazer instantâneo quando na verdade mostram apenas desejos perdidos e aflitos entre a lassidão do olhar e o beijo para sempre proibido.

Pude perceber que o descanso é em ti tão festejado e cultuado que as redes aqui possuem seu próprio supermercado. Redes que balançam as vontades daqueles que nos barcos se demoram nos afazeres sem nem mesmo saberem muito bem os seus próprios quereres.

No segundo dia, a chuva apareceu menos e talvez por isso o calor foi mais forte. A leitura do livro que me cativou me fez perceber o quanto a estada em ti é sempre forte. Da primeira vez, conheci animais, rios e desejos intermitentes e desta reconheci em ti o que estava todo o tempo à minha frente. O meu desejo irrealizado de perceber a tua delicadeza como marca indelével de cidade só foi perceptível quando em ti reencontrei a felicidade. Esta é a sua marca quase inaparente. A delicadeza de transformar as vontades e os quereres dos que em ti chegam naquilo que para sempre foram os seus desejos uniformes e ainda inaparentes.

A noite do segundo dia ainda não saiu de dentro de mim. Não a compreendi muito bem e por isso mesmo a guardei entre os recantos escondidos do meu coração como um tesouro encontrado e ainda não aberto. Percorri o caminho do cais até a berço do teu nascimento. Reconheci o modelo do forte a esperar a tua defesa, sempre contando com a própria sorte. O que realmente me causou encantamento foi avistar as onze janelas da casa perdida entre teus tormentos. Iluminada e perdida na tua sincera e pálida aquarela daquele momento. Adentrei nas suas paredes de história e inaugurei a alegria de avistar a tua baía sem nenhum corte, entre a iluminação perfeita e o borbulhar das águas sagradas. Foi como mergulhar sem salva vidas num mar de almas.

Ainda não me recuperei do afogamento. Sinto-me nadando eternamente naquelas águas e o que me prende é exatamente a tua delicadeza que me afaga sem nenhum lamento. Mesmo tendo entrando novamente no avião dormente. Mesmo tendo regressado para a minha terra com ares de ausente. Sinto o meu corpo se debater naquela baía. Sem corte ou morte anunciada. Apenas com a tua delicada delicadeza a me mostrar como morada. Belém, tu és como um amor para sempre perdido e encantado. Enamorado e incompleto. Guardado e secreto. Delicado e indiscreto. A insinuar no meu coração a dança do encontro eterno. Do que só reaparece a toda hora exatamente por parecer para sempre perdido, escondido nas entranhas dos meus desejos, para ti, sempre furtivos.

2 comentários:

Anônimo disse...

Letícia muito lindo este texto. Eu morei em Belém há uns 11 anos...quando vou lá sempre me emociono.

Anônimo disse...

Pois é, eis aqui alguém que ama Belém sem nunca ter estado lá...